Diante de tais narrativas fica explícito que as referências aos povos pré-colombianos não são fiéis ao que costumam dizer os historiadores, arqueólogos e antropólogos. Tal é o caso da criação das pirâmides egípcia, dos monumentos da Ilha de Páscoa e da cidade de Machu-Pichu. De fato, entre os adeptos do Vale do Amanhecer, os incas, maias e astecas não são exatamente aqueles conhecidos pelos pesquisadores. No que diz respeito a sua relação com Pai Seta Branca, essas menções misturam-se a outros elementos, como a nave extraterrena Estrela Candente e apresentam-se, por fim, modificadas, diferentes do que eram anteriormente.
A esse mecanismo, que opera pela recodificação de uma tradição anterior em algo inesperado e novo, pode-se chamar, segundo a semiótica russa, de modelização. Tipo de tradução ou processamento de códigos que se define enquanto passagem, travessia, movimento, portanto; e que se apresenta com freqüência no caso do objeto estudado. Nesse sentido, se existe entre os adeptos a crença em um Pai Seta Branca pré-colombiano, é fato que referências a esses povos estarão presentes, no objeto mencionado, de uma forma diferenciada, re-significada, portanto.
A codificação verbal, seja ela oral ou escrita, juntamente com a visual é, sem dúvida, a codificação de maior força de um Pai Seta Branca pré-colombiano. Ao que parece, os demais códigos, tanto os cinéticos como os sonoros, mesmo estando em permanente diálogo com os primeiros, e sendo de importância fundamental nessa formação, atuam basicamente como secundários. Contudo, para efeito de exposição neste trabalho, em um primeiro momento, deter-se-á sobre o código verbal, para em seguida se analisar o visual e as relações destes com os demais citados.
Embora pudesse ouvir e ver espíritos, teria sido a partir da fala - mítica, porque fundante - que Tia Neiva recebeu de Pai Seta Branca as informações de sua missão na Terra, e foi instruída pelas entidades na construção do Vale do Amanhecer. Pela palavra foram por ela reveladas, a toda comunidade, uma cosmogonia e uma cosmologia próprias à doutrina, e organizados os rituais, bem como a concepção física do local. Dizeres que eram passados aos adeptos por meio de palestras, conversas informais e cartas. Foi também pela palavra, em seus supostos encontros com a clarividente, que Pai Seta Branca teria contado, entre outras histórias, a sua própria. História que fala de incas, mais e astecas, e que assume, pelo mecanismo da recodificação, uma feição e características singulares, marcadas pelo inesperado e pelo status de pura criação.
O fato de os equitumans terem se estabelecido na região dos Andes e serem sepultados na área do atual lago Titicaca, dando origem inclusive à formação do referido lago, como resultante de “uma lágrima da Estrela Candente”, mostra bem esse aspecto de recodificação. O lago Titicaca é, de fato, uma referência importante para alguns povos andinos, seja por seu aspecto sócio-econômico - relativo à moradia e à atividade da pesca -, seja em seu aspecto mítico. Segundo Zuidema (1991: 25), há uma narrativa que conta como Manko Kapác, fundador da dinastia dos reis incas, chegou a Cusco, capital do império inca. Nessa versão, ao invés de ele ter supostamente surgido, juntamente com seus três irmãos, de uma gruta, como relata Favre (1988: 14), o herói civilizador e ancestral mítico do povo mencionado, apareceu pela primeira vez no mundo como nascido do lago Titicaca.
Outra referência de destaque presente no Vale do Amanhecer é à cidade de Machu-Picchu, o famoso santuário Inca. Nas narrativas míticas dos seguidores de Tia Neiva, as ruínas dessa cidade nada mais seriam que provas da existência da civilização tumuchi que, assim como a dos incas, segundo Favre (1988: 75-84), eram constituías por hábeis artesãos, grandes cientistas (astronomia e matemática) e arquitetos.
E se, segundo Favre (1988: 9), os pré-incaicos chavín (1800-400 a.C.) cultuavam o jaguar, no Vale do Amanhecer a figura desse felino não é menos importante. Para os seguidores de Tia Neiva, Pai Seta Branca encarnou na Terra como o “Grande Jaguar”, líder extremamente respeitado por sua coragem, astúcia e conhecimentos científicos. No Vale, o nome jaguar se estende, ainda, a todos os adeptos do sexo masculino, como uma forma de rememorar as façanhas do notável guerreiro e de reconhecê-los, também, como valentes e integrantes, em uma outra vida, do grupo comandado por Pai Seta Branca.
Há um aspecto interessante entre as narrativas míticas dos astecas, que é o da associação entre o jaguar, o sol e o seu oposto, a noite. De acordo com Soustelle (1987: 74), os astecas acreditavam que o mundo fora precedido por quatro outros universos, os “Quatro Sóis”, dentre os quais o primeiro chamava-se “Quarto-jaguar”. Este sol teria desaparecido em um gigantesco massacre, no qual os homens haviam sido devorados por jaguares. Segundo ele, entre o referido povo, o jaguar correspondia a Tezcatlipoca, deus das trevas e do céu noturno pontilhado de estrelas, tal qual a pelagem do felino. Vale dizer ainda que os astecas eram, por excelência, o “povo do sol”. E que, conforme Soustelle (1987: 14), em suas origens, já adoravam o deus solar e tribal Uitzilopochtli.
O Sol era também adorado pelos incas (1200-1572 d.C.), com o nome de Inti. Viracocha, seu oposto complementar, foi também uma divindade importante para o panteão incaico. Estava associado à terra e à água e foi, para os habitantes de Tiahuanaco, segundo Busto (1998: 1), o criador dos homens. De acordo com Ferreira (1995: 54), Viracocha era o deus criador e civilizador do universo. Após terminada sua obra, partiu pelo mar em direção ao Oeste; estando, assim, associado à costa. Já o Sol, deus principal e fonte da vida, teve seu culto difundido e imposto a todas as comunidades conquistadas nos Andes centrais. De acordo com Wachtel (apud Busto, 1998: 1-2), o Sol e Viracocha são deuses complementares por traduzirem as categorias do pensamento inca, além de entrarem em um sistema de correlações e oposições. Ao Sol referem-se o céu, o fogo a serra e o alto; a Viracocha, a terra, a água, a costa, e o baixo. Partes de uma visão global do mundo, formada a partir de uma mesma cosmogonia que comporta indivíduos bem como as dimensões de espaço e tempo.
Tal correspondência entre o Sol e Viracocha parece explícita na representação geralmente atribuída ao segundo, nas ruínas de Tiahuanaco, na área boliviana, próxima ao lago Titicaca. De cabeça retangular, contornada por uma auréola formada por raios e um rosto que parece humano, o deus ocupa o centro da famosa Porta do Sol, importante monumento do mundo andino. Está em posição frontal e segura um par de báculos, com forma de condores de pescoços compridos, mostrando-se adorado por quarenta e oito pequenas criaturas. Nesse caso, o Sol e Viracocha estão unidos não apenas em termos de narrativa, mas também de iconografia, pelos raios que circundam a cabeça do último.
Essa figura guarda uma forte semelhança com imagem do jaguar do Vale do Amanhecer, presente nas insígnias e roupas dos fiéis, bem como nas paredes dos templos. A figura do jaguar do Vale também é apresentada em perspectiva frontal; no entanto, não tem um corpo. Resume-se a uma cabeça, semelhante à do deus Viracocha. Essa cabeça é igualmente circundada por feixes de luz que lembram raios solares, embora sejam coloridos, como os do arco-íris. Tal referência é legitimada inclusive pelo adepto Vladimir Carvalho (06/1995) ao fazer alusão ao jaguar do Vale: “é um jaguar estilizado (...) se você for no altiplano boliviano, na Porta do Sol, você vai encontrar essa cabeça (...)”.
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Detalhe da Porta do Sol/ Viracocha | Insígnia com cabeça de jaguar |
A associação Viracocha - jaguar é uma criação dos adeptos do Vale do Amanhecer. Idéia que tem como base um relativo conhecimento da iconografia não apenas andina, mas pré-colombiana de um modo geral. De fato, a imagem do jaguar é constantemente representada na arquitetura e nas artes dos povos mencionados. E se Cusco, em seus primórdios, tinha a forma de um puma (felino da família do jaguar) - da qual a fortaleza de Sacsahuan seria a cabeça, enquanto que a confluência dos dois rios que atravessam a cidade formaria a cauda -, como afirma Favre (1988: 67-69), no Museo de La Nacion e no Museo del Oro, ambos em Lima, pode-se encontrar algumas representações, sobretudo de divindades pré-incaicas, com formas híbridas. Na maioria dos casos, verifica-se uma mistura de traços humanos com os de um jaguar, podendo-se verificar, também, a presença de animais alados.
A imagem do Sol, juntamente com a Lua, também é uma constante nas figurações do Vale do Amanhecer. Estão inclusive sobre o templo principal da comunidade, o qual tem sua fachada feita de pedras, lembrando as ruínas de algumas de suas supostas encarnações, como a dos pré-colombianos. Considerados como divindades entre grande parte dos povos mencionados, no Vale, o Sol e a Lua são elevados à categoria de “astros guia” da doutrina. As cores que os representam são sempre o amarelo ou o dourado e o azul ou o prateado, respectivamente. Enquanto a lua é associada ao princípio feminino, entre os adeptos, o sol é visto enquanto centro de energia vital do universo. Simboliza o Oráculo de Ariano - foco irradiador de energia -, também conhecido como Oráculo de Simiromba ou Oráculo de Pai Seta Branca.
Na iconografia do Vale do Amanhecer, Pai Seta Branca, ou Cacique da Lança Branca - se lembrado em sua em sua última encarnação -, é sempre um índio de aparência bonita, jovem e altiva. Veste-se com uma túnica azul, um longo cocar e usa sandálias de couro. Tem olhos puxados, pele morena, e segura com as duas mãos uma flecha/lança de seta (ponta) branca, como indicado em seu próprio nome - relação que evidencia um nítido diálogo entre os códigos verbais e visuais.
Pai Seta Branca/ pintura de Vilela
O texto Pai Seta Branca pré-colombiano pode ser percebido, ainda, em sua codificação cinética. Segundo os adeptos, a referida entidade incorpora em alguns rituais do Vale do Amanhecer, como é o caso da Bênção de Pai Seta Branca, realizado no primeiro domingo de cada mês e o Oráculo, executado nos dias de quarta, sábado e domingo (dias de trabalho oficial). Há também uma bênção anual, concedida pela entidade no dia 31 de dezembro, por ocasião da passagem do ano.
Falando em um espanhol bastante rudimentar, o espírito, supostamente incorporado no corpo de um fiel, apresenta, invariavelmente, um semblante, um gestual e um tom de voz tranqüilos. Manifestação que só se dá após o cumprimento de preceitos rigorosos por parte dos adeptos. Os rituais do Vale são extremamente complexos: exigem a presença de um grande número de fiéis, devidamente paramentados e conhecedores de uma organização minuciosa, em que palavras, canto, gestos e movimentos são rigidamente pré-estabelecidos. Rituais, aliás, que se encontram descritos em ricos detalhes em um dos livros editados pela comunidade e que mostram, em sua constituição, a íntima relação entre os códigos verbais, visuais, sonoros e cinéticos.
Fazendo uma nova ligação entre o verbal e o cinético, e estabelecendo a relação destes com o código sonoro, há um canto da comunidade que, segundo Álvares (1991a: 30), atua como um chamado à referida entidade. Pai Seta Branca ao ouvir tal canto, teria facilitado seu deslocamento dos planos espirituais para o plano físico. “Divino Seta Branca/ Tu és a lei de Deus/ Imaculado sejas tu/ Juntinho aos pés de Jesus/ Seta Branca querido por nós/ Tu és o Amor e és a luz/ Que iluminas os tiranos corações/ Erguendo seus filhos a Jesus”.
Mas não é apenas o canto criado pela comunidade que, segundo os adeptos, refere-se a Pai Seta Branca. Há, para seus devotos, uma outra forma de musicar a entidade. Uma nova modelização, entre as tantas já apresentadas, que se verifica a partir da tradução de uma tradição estranha à entidade indígena, em algo inesperado e de fácil leitura. Os adeptos do Vale apropriaram-se de uma música de Caetano Veloso, e dela fizeram uma referência direta à entidade em questão.
Sobre esse assunto, Martins (2001: 2) afirma que Ana, uma mulher criada pela clarividente, fala do tempo em que o artista baiano foi recebido por Tia Neiva no Vale do Amanhecer. Depois de conversar longo tempo com a clarividente, Caetano Veloso teria ido visitar o templo de pedra, ou templo principal. A emoção de ver imagem de Pai Seta Branca, ali, diante de seus olhos e em grandes proporções, teria sido tão grande que ele compôs, em homenagem à entidade, a música “Um índio” [1] .
De fato, como diz a autora,
a canção de Caetano põe em evidência o personagem central mais sagrado da doutrina do amanhecer, o cacique inca Pai Seta Branca, cuja imagem está sentada no centro do templo de pedra, impávido, tranqüilo e infalível, preservado em pleno corpo físico, a esperar a entrada da nova era (Martins, 2001: 2).
Desse modo, se na canção de Caetano, um índio descerá de uma estrela colorida brilhante e pousará no coração do hemisfério sul na América, de acordo com Martins,
para os seguidores da doutrina do amanhecer, o índio é o Pai Seta Branca, cacique inca, mentor espiritual da Tia Neiva. A estrela colorida e brilhante é a Estrela Manhante, lugar onde vivem os espíritos mais evoluídos que descem ao Vale do Amanhecer para trabalhar incorporando nos médiuns, com a finalidade de promoverem a cura do espírito [ou seria a Estrela Candente?]. O coração do hemisfério sul da América, o ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico, o centro do mundo, lugar predestinado para se encontrarem os que se preparam para a entrada do terceiro milênio é o próprio Vale do Amanhecer (Martins, 2001: 2).
E mais: se, na música de Caetano, no momento em que o índio descer, o que se revelará aos povos, surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio significa, segundo Martins (2001: 2), referindo-se aos adeptos, que Pai Seta Branca descerá para encerrar o milênio. E que levará, consigo, os seguidores da doutrina do amanhecer para o Astral Superior - lá estaria situado o planeta Capela -, onde não mais terão a necessidade de encarnar e onde não mais perecerão de dor e sofrimento. Assim, com a chegada de Pai Seta Branca a Terra, na visão dos fiéis, será aplicada a lei da evolução dos espíritos e, como profetizaria a música de Caetano, tudo o que antes parecia pertencer ao ocultismo, mostrar-se-á como o óbvio